A desconcentração é o fenômeno pelo qual se dá uma distribuição interna de competências no Ente federativo. É natural que o chefe do Poder Executivo não possa concentrar em si o acompanhamento direto de todas as matérias que são de competência da União, tais como saúde, educação, cultura, entre tantas outras. Por esse motivo, mostrou-se necessária essa desconcentração, técnica pela qual se distribui a competência federal dentro da mesma pessoa jurídica (União), havendo a criação de órgãos, sem personalidade jurídica, e subordinação hierárquica entre eles.
Na desconcentração da Administração Federal, a única pessoa jurídica existente é a própria União, sendo os órgãos apenas subdivisões administrativas, portanto sem personalidade jurídica (ou seja, não são pessoas jurídicas), criados de forma a obedecer-se uma escala hierárquica na qual, em seu ápice, estará a Presidência da República. Assim, foram criados os vários Ministérios (Fazenda, Saúde, Educação...) e em cada um deles são criados órgãos menores, com nomes variados, tais como secretarias, superintendências, coordenadorias, inspetorias, departamentos...
A desconcentração ocorre em função de três critérios:
a) Em razão da matéria - Cada órgão tratará de uma matéria específica, tais como o Ministério da Fazenda, Ministério das Comunicações, Ministério da Saúde...
b) Em razão da hierarquia - A matéria correlata ao Ministério da Fazenda, por exemplo, ainda precisa ser escalonada em órgãos menores, em função de seus níveis hierárquicos, como ocorre, por exemplo, nos órgãos da Secretaria da Receita Federal.
c) Em razão do critério geográfico - Tornou-se necessário, por exemplo, que a Secretaria da Receita Federal estivesse próxima aos contribuintes, espalhados por todo o Brasil, criando-se a Superintendência da Receita Federal no Rio de Janeiro.
A descentralização, por outro lado, ocorre quando se percebe a necessidade de atribuir uma tarefa administrativa a outra pessoa jurídica, distinta, para que esta possa executar o serviço com autonomia, não estando subordinada àquela pessoa jurídica que descentralizou a tarefa. A descentralização pressupõe sempre a existência de outra pessoa, natural ou jurídica.
Em certos casos, é mais interessante atribuir aquela atividade, que é de competência do Estado, a alguma empresa privada para que esta a exerça como atividade econômica, remunerando-se diretamente pela cobrança de tarifas ao usuário, ficando a Administração no papel de fiscal daquele serviço, verificando-se a qualidade do serviço prestado, os valores cobrados e os direitos dos usuários.
Outras situações existem, ainda, nas quais o Estado não pode transferir aquele serviço a uma empresa privada, vez que configura uma atividade típica da própria Administração, inimaginável de ser prestada por uma empresa privada, não se configurando como uma atividade econômica e não atraindo o interesse da iniciativa privada, ou, mesmo admitindo-se em tese possível o repasse à iniciativa privada, a Administração possui interesse em mantê-la. Nessas duas situações, considerando-se ainda importante que, para sua execução, as decisões a serem tomadas e os planejamentos a serem feitos não poderão estar subordinados à aprovação pelo chefe do Poder Executivo, vez que deverá contar o critério técnico, e não o político, na tomada de decisões, opta-se pela criação de outra entidade, que passará a integrar a chamada Administração Indireta, não subordinada à Administração Direta, que descentralizou a tarefa. Essa nova entidade estará sim vinculada ao órgão da Administração Direta cuja matéria lhe é inerente, significando apenas uma ligação, correlação, mas sem estar subordinada a ele. Exemplo disso é o Banco Central, entidade da Administração Indireta que é responsável, entre outras coisas, pela fixação da taxa de juros no país, decisão puramente técnica e que necessita de independência, e que está vinculado ao Ministério da Fazenda.
O estudo reservado ao serviço público é interessante e envolvente. Assim como outros institutos do direito, temos que viajar por outros séculos para conhecer as origens e conceituações primárias do instituto do serviço público.
Com estes artigos visitaremos tais origens até desaguar no que se chama nova noção do serviço público e verificaremos o porque dessa qualificação de “nova noção”.
Este primeiro artigo tratará do conceito de serviço público e a problemática de sua conceituação, já que na construção do conceito são utilizados aspectos históricos e elementos plásticos, até chegarmos a um conceito que entendo cabível aos dias atuais.
O CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO
A problemática que envolve a conceituação de serviço público, pode ter como fonte a definição do objeto e a multiplicidade de conceitos.
O que podemos definir como serviço público? Adotaríamos um conceito amplo ou restrito? Mutável ou imutável? A separação do público do privado, do essencial do não essencial poderia facilitar a definição? Vejamos as digressões sobre tais indagações.
MUTABILIDADE X IMUTABILIDADE
Assim como a sociedade necessita e busca operar avanços e transformações para atender seus anseios, do mesmo modo deve-se comportar o direito, para acompanhar e reger as relações e os passos da sociedade.
Podemos verificar isso na prática, através da técnica da mutação constitucional, utilizada pelo STF para solucionar conflitos de maneira que as normas sejam lidas de acordo com o contemporâneo.
Posto isto, deduzimos que os conceitos também podem sofrer revisitações. Quanto ao serviço público, que é o assunto que ora tratamos, podemos afirmar que seu conceito possui a característica da plasticidade. Explica-se.
O que pode ser considerado serviço público hoje, poderá não ser amanhã. Isso decorre das próprias necessidades da sociedade e das possibilidades do Poder Público, que pode desempenhar certa atividade no regime do serviço público ou pode convertê-la em atividade econômica em sentido estrito, com a alteração do regime jurídico 1.
Em termos constitucionais, para Fernando Dias Menezes de Almeida, a questão parte de critérios políticos, vejamos:
“De fato, na realidade jurídica brasileira, pode-se dizer que foi o constituinte que fixou, por critérios políticos (concepção sobre o papel do Estado...), o que deva ser considerado serviço público. E essa opção, que atualmente se fez e se encontra consagrada na Constituição vigente, pode perfeitamente vir a mudar no futuro, do mesmo modo que já não é a mesma coisa que existiu no passado; também aquilo que hoje é considerado serviço público num dado ordenamento jurídico, pode bem não o ser em outro.” 2
Diante do colocado, pode-se formular a seguinte indagação: Pode um serviço público ser criado por lei? Observamos três correntes na doutrina. A primeira defendida pelos doutrinadores legalistas, como Maria Sylvia Zanella Di Pietro, entendem pela possibilidade desde que hajam disposições constitucionais ou legais autorizativas, pois,
“é o Estado, por meio de lei, que escolhe quais as atividades que, em determinado momento, são consideradas serviços públicos; no direito brasileiro, a própria Constituição faz essa indicação nos arts. 21, incisos X, XI, XII, XV e XXIII, e 25, p. 2º, alterados, respectivamente, pelas Emendas Constitucionais 8 e 5, de 1995; isto exclui a possibilidade de distinguir, mediante critérios objetivos, o serviço público da atividade privada; esta permanecerá como tal enquanto o Estado não assumir como própria.” 3
Para Carlos Ari Sundfeld, deve-se adicionar ainda a previsão constitucional de competência legislativa sobre atividades que se pretende considerar como serviços públicos 4.
Já para os essencialistas, havendo necessidade relevante da atividade para oferecimento à sociedade ou, em outro caso, não havendo desempenho satisfatório pela iniciativa privada, seria lícito a criação de serviço público por lei. Para Eros Roberto Grau,
“é inteiramente equivocada a tentativa de conceituar serviço público como atividade sujeita a regime de serviço público. Ao afirmar-se tal – que serviço público é atividade desempenhada sob esse regime - , além de privilegiar-se a forma, em detrimento do conteúdo, , perpetra-se indesculpável tautologia. Determinada atividade fica sujeita a regime de serviço público porque é serviço público; não o inverso, como muitos propõem, ou seja, passa a ser tida como serviço público porque assujeitada a regime de serviço publico.” 5
Marçal Justen Filho, também partidário da segunda corrente, afirma que a vontade legislativa é insuficiente, já que o conceito de serviço público possui um núcleo que limitaria esta vontade. Dentro deste núcleo, estaria o interesse público e a dignidade da pessoa humana. 6
Para uma terceira corrente, defendida por Fernando Herren Aguillar, a criação de um novo serviço público só poderia se dar através de emenda constitucional, já que, para que pudesse haver a instituição por lei, necessário seria que houvesse uma definição conceitual de serviço público na Constituição, para servir de norte ao legislador infra – constitucional, o que na verdade não ocorre. Entender de modo contrário, criaria uma facilidade para o Estado que exerceria atividade econômica em regime privilegiado, sem satisfazer as exigências constitucionais, já que, para exercer concorrencialmente atividade econômica, necessita-se de lei prévia autorizativa e o atendimento aos requisitos constitucionais de relevante interesse coletivo e imperativos de segurança nacional. Esta forma de pensar se alia aos essencialistas, pois, para eles, basta a relevância e a necessidade da atividade para que o serviço seja criado ou transformado. Vejamos as conclusões de Fernando Herren Aguillar:
“O regime de privilégio, típico dos serviços públicos, supõe o exercício de atividade econômica pelo Estado com exclusividade em relação aos particulares e em relação aos demais entes federativos não titulares. Opera verdadeiro monopólio de uma dada atividade econômica. Daí que o mesmo regime imposto ao Estado para o fim de monopolizar uma determinada atividade econômica é também aplicável para as hipóteses de criação de novo serviço público.
Não se pode dizer, por outro lado, que bastaria uma lei, com base em Segurança Nacional ou relevante interesse coletivo, já que essas regras, do art. 173, são, aplicáveis apenas às atividades econômicas em sentido estrito e não aos serviços públicos.
A solução para contornar a restrição (de se exigir emenda constitucional para instituir serviço público novo) seria, em princípio, extrair da Constituição um conceito de serviço público que permitisse sustentar-se que determinada atividade econômica em sentido estrito pode converter-se em serviço público. Mas essa busca é vã: a Constituição não estabeleceu qualquer mecanismo expresso de instituição de serviços públicos para além da listagem que apresenta, nem transpira qualquer conceito de serviço público.
Assim, se não quisermos desconsiderar o art. 173, teremos que admitir, logicamente, que somente é possível instituir serviços públicos não previstos constitucionalmente mediante em emenda constitucional.” 7
ESSENCIALIDADE X NÃO ESSENCIALIDADE
Seria a essencialidade um aspecto que ajudaria na definição de serviço público? Em termos práticos, já está provado que a resposta é negativa. Explica-se exemplificando.
Saúde e educação são consideradas atividades de cunho essencial e nem por isso são desempenhadas em regime de privilégio pelo Estado. O que se deve levar em consideração é o regime jurídico aplicável. 8 É serviço público quando desempenhado diretamente pelo Estado ou em regime de concessão ou permissão pelos particulares. Em contrapartida, será atividade econômica em sentido estrito quando Estado e particular exercem, determinada atividade essencial ou não essencial concorrencialmente, como já exemplificado com a saúde e a educação.
Desse modo, não há serviço público submetido exclusivamente ao regime de direito privado, nem tão pouco singularmente essencial.
SERVIÇO PÚBLICO X ATIVIDADE ECONÔMICA
No Brasil, controverte-se a doutrina acerca da distinção entre serviço público e atividade econômica.
Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que a noção de atividade econômica varia em função do momento em que vive a sociedade, tornando o conceito plástico, fluido. Esta variação encontra-se dentro do que se denomina “esfera econômica” e das atividades existenciais à sociedade. 9
Já Eros Roberto Grau considera a existência de uma atividade econômica em sentido amplo, onde seriam suas espécies a atividade econômica em sentido estrito e os serviços públicos, que neste caso, estariam sujeitos a regimes jurídicos distintos. Para o Autor, “a noção de serviço público há de ser construída sobre as idéias de coesão e interdependência social”. 10
Contrapondo as idéias de Eros Roberto Grau, Odete Medauar entende que não se deve considerar serviço público como atividade econômica, já que os critérios constitucionais definidos nos arts. 170 e 175 são claros nas atribuições, vejamos: 11
“A nosso ver, não parece adequado ao ordenamento brasileiro considerar o serviço público como atividade econômica. De um lado, tem-se o art.175, que, de modo claro atribui o serviço público ao poder público, podendo ser realizado pelo setor privado mediante concessão ou permissão. Vê-se que a Constituição Federal fixou um vínculo de presença do poder público na atividade qualificada como serviço público, presença esta que pode ser forte ou fraca, mas que não pode ser abolida. Esta presença se expressa na escolha do modo de realização da atividade, na sua destinação ao atendimento de necessidades da coletividade. Daí, como observa Giuseppe Caia, ser essencial a pertinência do serviço a Administração, situação que não implica, necessariamente, gestão direta (na obra coletiva Diritto Administrativo, 2ª, vol. II, Ed. Bolonha, Ed. MONDUZZI, p. 923).
De outro lado, verifica-se que alguns preceitos contidos no art. 170 e destinados a nortear a atividade econômica, não se aplicam ao serviço público. É o caso da livre iniciativa, por exemplo; não se pode dizer que a prestação dos serviços públicos é informada pela livre iniciativa. A decisão de transferir a execução ao setor privado é sempre do poder público.
Também é impensável aplicar ao serviço público preceito do parágrafo único do art. 170, portanto, todos os serviços públicos prestado por particulares devem sê-lo mediante titulação, na qual está subentendido o consentimento do poder público. Para Caia (op. cit., p. 925) “a gestão por particulares exige título jurídico, de atribuição, emitido pela Administração, que dita também o modo de realização do serviço.”
O CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO
Decorre desta distinção entre atividade econômica e serviço público, o sentido que se deve aplicar a este último, se amplo (onde se abrange toda e qualquer atividade estatal) ou restrito (quando se exclui as funções legislativa e jurisdicional), que por sua vez está ligado ao conceito de serviço público. Mais uma vez a doutrina se controverte. Vejamos algumas opiniões.
Para Mário Masagão, o conceito de serviço público abrange a atividade judiciária e administrativa, já que seria “toda atividade que o Estado exerce para cumprir seus fins.” 12
Já para Hely Lopes Meirelles, serviço público seria “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado.” 13
Maria Sylvia Zanella Di Pietro considera serviço público como “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob o regime jurídico total ou parcialmente público.” Trata-se, portanto, de conceito restrito. 14
Na mesma esteira, adotando uma posição um pouco mais restrita, está o conceito de Celso Antônio Bandeira de Mello, onde “serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça às vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais , instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo.” 15.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto aduz que, tanto a conceituação ampla quanto a restrita, estão ultrapassadas. Para o autor, basta que o Estado preste o serviço público por qualquer um de seus órgãos ou que os delegatários legais assegurem sua prestação, sem qualquer interferência da Administração Pública.
Serviços públicos, assim, teriam um conceito “transicional e provisório”, onde seriam “as atividades pelas quais o Estado, direta ou indiretamente, promove ou assegura a satisfação de interesses públicos, assim por lei considerados, sob regime jurídico próprio a elas aplicável, ainda que não necessariamente de Direito Público.” 16
No próximo artigo será abordada a noção do serviço público, seu histórico e a teoria do serviço público na França, berço das discussões originárias sobre o instituto.
1 Na doutrina francesa, três princípios foram elevados como fundamentais: continuidade, igualdade e mutabilidade. Nos interessa este último. “Esse princípio diz respeito à mutabilidade do interesse coletivo no tempo.As exigências de uma dada época podem sofrer alterações em decorrência das circunstâncias de vida de um povo.Uma necessidade que se traduz em uma obrigação para o Estado pode deixar de existir num dado outro momento.A adaptabililidade pode levar à criação ou à supressão de uma prestação, como também à simples mudança de regime jurídico, quando por exemplo, um serviço público administrativo passa a ser considerado serviço público industrial ou comercial. A obrigação da Administração é constatar as modificações jurídicas, econômicas ou técnicas e dar andamento às transformações necessárias. Esse princípio implica na inexistência de obstáculos jurídicos às mudanças a serem desencadeadas pela Administração.(...)
Pode-se encontrar também em Duguit, a origem deste princípio. Para ele, havia algo de “ essencialmente variável, de evolutivo” , no trato do serviço público, que tornava impossível fixar um elenco exaustivo de atividades que deveriam receber essa qualificação pelo legislador. A mutabilidade, no sentido de Duguit, tinha, no entanto, à previsão de que os serviços públicos aumentariam proporcionalmente ao aumento das necesidades da civilização. O progreso para ele, significava que o Estado, deveria assumir, cada vez mais, obrigações perante os cidadãos. Tratava-se de uma perspectiva diferente da que se tem concebido atualmente.” Mônica Spezia Justen, A Noção de Serviço Público no Direito Europeu. São Paulo: ed. Dialética, 2003, págs. 54/55.
2 Fernando Dias Menezes de Almeida, Aspectos Constitucionais da Concessão de Serviços Públicos. In: Odete Medauar, Concessão de Serviço Público. São Paulo, Ed. Rt, 1995, pág. 31.
3 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 14 ed. São Paulo, ed atlas, 2002, pág.99.
4 Fernando Herren Aguillar discorda da posição de Carlos Ari Sundfeld, pois, sua conclusão acerca da competência legislativa levaria a um paradoxo, já que, “se a atribuição constitucional de competência legislativa também outorga ao Estado a prerrogativa de explorar atividades econômicas em caráter de concorrência, não seria possível, porém, concluir que o Estado desempenharia tais atividades sob o regime de serviço público, que se caracteriza pelo regime de privilégio estatal (art. 175).
Assim, se a outorga de competência legislativa permitisse a exploração estatal da atividade regulada, e se tal exploração, não poderia se dar em regime de privilégio, é forçoso concluir que dessa atribuição de competência legislativa não decorreria direito ao Estado de explorar tais atividades em regime de serviço público. No máximo, poder –se –ia que tal prerrogativa estatal abrangeria apenas o desempenho de atividade econ6omica em sentido estrito, que se dá forçosamente em regime de concorrência, excetuados os casos de monopólios constitucionalmente constituídos.
Disso inferimos que a outorga de competência legislativa ao ente federativo sobre determinada atividade não lhe dá o direito de explorar essa mesma atividade em regime de direito público.
5 Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo. Ed. Malheiros, 1997, pág. 145.
6 Marçal Justen Filho, Conceito de interesse público e a personalização do direito administrativo, RTDP 26/129.
7 Fernando Herren Aguillar, Controle Social dos Serviços Públicos. São Paulo: Ed. Max Limonad. 1999, pág. 133.
8 Segundo Fernando Herren Aguillar, “Somente se pode distinguir, portanto, serviços públicos de atividades econômicas em sentido estrito desempenhadas pelo Estado pelas conseqüências jurídicas que deles decorrem, ou então pela própria definição de serviços em contraposição à de atividade econômica. Então, podemos dizer que o regime jurídico é que determina fundamentalmente tratar-se de serviço público ou atividade econômica em sentido estrito.” Idem, pág. 149
9 Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo. 14ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, pág.618,628.
10 Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo. Ed. Malheiros, 1997, pág. 140, 141 e 164.
11 Odete Medauar, Serviços Públicos e Serviços de interesse econômico geral. In: Diogo de Figueiredo Moreira Neto(coord.). Uma Avaliação das Tendências Contemporâneas do Direito Administrativo. Obra em Homenagem a Eduardo García de Enterría. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pág. 125.
12 Mário Masagão, Curso de Direito Administrativo, 3ª Ed, São Paulo: Ed. Max Limonad, pág 279/280.
13 Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro. 27ª Ed. , atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo, José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, pág. 316.
14 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 14 ed. São Paulo, ed atlas, 2002, pág.99.
15 Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo. 14ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, pág.600.
1. A Anulação ou Invalidação do ato administrativo1:
É a declaração de invalidade de um ato administrativo ilegítimo ou ilegal, feita pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário.
Baseia-se, portanto, em razões de ilegitimidade e ilegalidade.
Desde que a Administração reconheça que praticou um ato contrário ao direito vigente, cumpre-lhe anulá-lo o quanto antes, para restabelecer a legalidade administrativa.
Como a desconformidade com a lei atinge o ato em suas origens, a anulação produz efeitos retroativos à data em que foi emitido (efeitos ex tunc, ou seja, a partir do momento de sua edição).2
A anulação pode ser feita tanto pelo Poder Judiciário, como pela Administração Pública3 , com base no seu poder de autotutela sobre os próprios atos, de acordo com entendimento já consagrado pelo Supremo Tribunal Federal por meio das Súmulas transcritas a seguir:
Súmula 346: "A Administração Pública pode anular seus próprios atos".
Súmula 473: "A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".
Para ser feita pelo Poder Judiciário, a anulação depende de provocação do interessado - tendo em vista que a atuação do Poder Judiciário, diferentemente do que ocorre com a atuação administrativa, pauta-se peloPrincípio da Demanda - iniciativa da parte -, que pode utilizar-se quer das ações ordinárias, quer dos remédios constitucionais de controle da administração (mandado de segurança, ação popular etc.).
O conceito de ilegalidade ou ilegitimidade, para fins de anulação do ato administrativo, não se restringe somente à violação frontal da lei.
Pois abrange não só a clara e direta infringência do texto legal, como também o abuso, por excesso ou desvio de poder, ou por negação aos princípios gerais do direito.
O ato nulo não vincula as partes, mas pode produzir efeitos válidos em relação a terceiros de boa-fé.
Somente os efeitos, que atingem terceiros, é que devem ser respeitados pela administração.
Torna-se mais fácil entendermos os motivos pelos quais os atos administrativos viciados devem ser anulados quando percebemos que tais vícios sempre atingirão um dos requisitos de validade dos ditos atos. Como sabemos, esses requisitos são a competência, a finalidade, a forma, o motivo e o objeto.
Portanto, violado um desses requisitos, impõe-se a decretação da nulidade do ato4.
Mas quando saber quando foi violado um desses requisitos?
Nesse particular, socorre-nos a Lei da Ação Popular (Lei 4.717 de 29/06/65), que em seu artigo segundo, ao tratar dos atos lesivos ao patrimônio público, enumera as hipóteses em que ficam caracterizados os vícios que podem atingir os atos administrativos, verbis:
“Art. 2º (...)”.
a)incompetência
a) Vício de forma
b) Ilegalidade do objeto
c) Inexistência dos motivos
d) Desvio de finalidade
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:
a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou5;
b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato6 ;
c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo7 ;
d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou direito, em que se fundamentou o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;
e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência8 .
2. A controvérsia doutrinária a cerca da Invalidação dos Atos Administrativos
O tratamento da questão relativa à invalidação (anulação) dos atos administrativos baseia-se, normalmente, nos clássicos ensinamentos de Hely L. Meirellles e corresponde a corrente tradicional sobre o tema, razão pela qual a mantivemos aqui, inicialmente.
Todavia, modernamente, muito se discute sobre esse posicionamento, razão pela qual, se faz necessário um maior aprofundamento sobre o tema da nulidade dos atos administrativos, quer pelas mudanças nos paradigmas informadores do Direito Administrativo, decorrentes mesmo da evolução dessa cadeira jurídica, quer pela própria necessidade de adequar-se os postulados básicos do direito público à nova realidade constitucional e legal atual.
3. A Teoria das Nulidades
A questão das nulidades no Direito é um dos temas mais tortuosos enfrentados pelos juristas e doutrinadores.
Se mesmo no Direito Civil9 ainda provoca polêmicas, de pode imaginar seus efeitos no Direito Administrativo. Bem oportuna é a lição de Seabra Fagundes, lembrado por Carvalho Filho, que asseverou “a deficiência e a falta de sistematização dos textos de Direito Administrativo embaraçam a construção da teoria das nulidades dos atos da Administração Pública”.
As nulidades no direito comum tradicionalmente obedecem a um sistema dicotômico, no qual, dependendo da intensidade do vício que atinja o ato jurídico, dependendo do tipo de interesse violado – o interesse público, ou o interesse privado-, maculado pelo vício, a lei o fulmina com a pecha da nulidade ou da anulabilidade, ambas figurando no novo Código Civil, art. 166 e 171, respectivamente (Art. 145 e 147 do Código de 1916).
Como salienta Celso Antônio Bandeira de Mello, “a ordem normativa pode repelir com intensidade variável atos praticados em desobediência às disposições jurídicas, estabelecendo destarte uma gradação no repúdio a eles”.
No Direito Civil, são duas as diferenças básicas entre a nulidade e a anulabilidade10 . A primeira é que a nulidade não admite a convalidação, ao passo que na anulabilidade ela é possível. A segunda é que a nulidade pode ser decretada pelo juiz ex officio (sem provocação da parte interessada), ou ainda mediante provocação pela parte ou pelo Ministério Público; enquanto que no caso da anulabilidade, esta só pode ser apreciada mediante provocação da(s) parte(s) interessada(s).
A possibilidade de adaptar-se a teoria das nulidades civilistas ao Direito Administrativo provocou enorme cisão na doutrina, a ponto de dividi-la em dois pólos antagônicos: os monistas e os dualistas.
Para os monistas, é inaplicável ao Direito Administrativo a dicotomia das nulidades do Direito Civil. Para estes autores, o ato administrativo será nulo ou válido (esta posição e defendida principalmente por Hely L. Meirelles11 , Diógenes Gasparini, Sérgio Ferraz etc).
Já para os dualistas, os atos administrativos podem ser nulos ou anuláveis, de acordo com a maior ou menor gravidade do vício.
Para estes, é possível que o Direito Administrativo admita a existência da dicotomia entre nulidade e anulabilidade, inclusive, neste último caso, com o efeito da convalidação de atos defeituosos (posição defendida principalmente por Celso A. Bandeira de Mello, Cretella Júnior, Lucia Valle Figueiredo e Silvia Di Pietro)12 .
A diferença predominante entre nulidade e anulabilidade em Direito Administrativo, baseia-se, quase que exclusivamente, na possibilidade de convalidação. Logo, no ato absolutamente nulo, impossível é a sua convalidação, enquanto que nos atos anuláveis é possível que os mesmos sejam saneados pela Administração.
Esta é a posição defendida por Celso A. B. de Mello, para quem, “nulos são os atos que não podem ser convalidados, entrando nessa categoria: os atos que a lei assim o declare; os atos em que é materialmente impossível a convalidação, pois se o mesmo conteúdo fosse novamente produzido, seria reproduzida a invalidade anterior (é o que ocorre com os vícios relativos ao objeto, à finalidade, ao motivo, à causa); seriam anuláveis os que a lei assim declare; os que podem ser praticados sem vício (é o caso dos praticados por sujeito incompetente, com vício de vontade, com defeito de formalidade)”.
Di Pietro completa o raciocínio lembrando que as hipóteses de nulidade e anulabilidade do direito civil é que não podem ser inteiramente transpostas para o direito administrativo, face às peculiaridades desta cadeira publicista. A necessidade de manifestação do interessado, exigida na anulabilidade civil, carece de aplicação no campo administrativista, em virtude da autotutela administrativa; já a possibilidade ou não da convalidação é possível ser transposta, residindo, ai mesmo, a diferença entre a nulidade e a anulabilidade.
Com o advento da lei federal nº 9.784/99 foi positivada a teoria dualista, já que a referida lei admite expressamente a possibilidade de convalidação dos atos administrativos que apresentarem defeitos sanáveis, pelo que se faz imperioso, hodiernamente, a aceitação de atos administrativos anuláveis13 .
Por último, uma outra questão controvertida, é a de saber se há prazo para a Administração anular seus atos.
O art. 54 da lei nº 9.784/99 prescreve que “o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai14 em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.
Logo, é de se afirmar que a despeito de todas as inúmeras controvérsias doutrinárias, a lei acima referida, estabelece o prazo qüinqüenal para a administração anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, ressalvada a má-fé. Findo tal prazo, o ato não mais poderá ser anulado, ocorrendo, via de conseqüência, a convalidação tácita15.
Ressalte-se, todavia, que o prazo qüinqüenal acima mencionado só pode referir-se, por ilação lógico-jurídica, e interpretação sistemática da legislação vigente, aos atos anuláveis, e não aos nulos. Os atos nulos, portadores de vícios insanáveis, ou expressamente declarados nulos por disposição expressa de lei podem ser invalidados a qualquer tempo.
É que não se pode admitir que a nulidade visceral, deletéria do interesse público e violadora de expressa determinação legal, tenha a sua declaração de nulidade sujeita a prazo.
É correto que se sujeite a prazo a ação anulatória, mas não a ação de declaração de nulidade. Não é por outra razão que o art. 54, acima transcrito menciona que o prazo qüinqüenal é de natureza decadencial. Sabe-se que os prazos de natureza decadencial ligam-se intimamente ao exercício dos chamados direitos potestativos. Ora, o direito da administração de anular atos administrativos que produzam efeitos favoráveis aos destinatários é típico exemplo de direito potestativo, os quais devem ter prazo fixado para o seu exercício, para que não se sujeite aquele a quem o ato beneficie a eterna possibilidade de intervenção em sua esfera jurídica pela simples manifestação de vontade da administração.
Por outro lado, o princípio da segurança jurídica impede a perpetuação de controvérsias e privilegia a sedimentação das relações jurídicas. Por tal razão, mesmo antes do advento da lei nº 9.784/99 já se defendia, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a existência de um prazo razoável para se proceder à anulação dos atos administrativos de que decorressem efeitos favoráveis para os administrados, ficando, caso a caso, sujeito ao prudente arbítrio do julgador ou do aplicador do direito a fixação de um prazo tido como razoável. O mérito inegável da lei nº 9.784/99 foi uniformizar esse prazo, estabelecendo-o como regra imperativa e uniforme para a administração federal. Ressalte-se que o reconhecimento da existência do sub-princípio da segurança jurídica como princípio constitucional é o que torna possível a existência do próprio art. 54 da lei nº 9.784/99, pois caso contrário, seria ele violador do princípio da legalidade.
Logo, tratando-se de ato anulável, deve a administração anulá-lo ou convalidá-lo expressamente dentro do prazo decadencial de cinco anos, sob pena de depois de exaurido este prazo, o ato tornar-se convalidado tacitamente, e, portanto, intocável, por decaído o direito de decretar-lhe a anulação.
Já no que se refere à declaração de nulidade, não se pode aceitar que haja prazo para fazê-lo. O que se pode considerar é que os atos administrativos viciados que não se encontrem sob o manto do art. 54, caput, da Lei Federal n. 9.784/99, possam ser administrativamente invalidados a qualquer tempo16 , desde que os terceiros de boa-fé prejudicados tenham seus possíveis prejuízos ressarcidos, e, especialmente, que a má-fé do beneficiário seja comprovada17 .
Como se poderia entender que a nomeação de servidor público para cargo efetivo sem o atendimento a exigência de prévia aprovação em concurso público esteja sujeita a prazo, diante de sua visceral nulidade e da expressa determinação contida no parágrafo segundo da Constituição que expressamente o declara nulo? O que se pode aceitar é a convalidação dos atos praticados por tal servidor que atinjam terceiros de boa-fé, como antes já foi dito, mas jamais que a nomeação em si tornou-se inatacável pela decadência. O mesmo ocorreria com a expressa determinação de nulidade dos atos mencionados no art. 21 da lei complementar nº 1001/00.
Há que se distinguir, portanto, a anulação, sujeita ao prazo decadencial de cinco anos, previsto no art. 54 da lei nº 9.784/99, da declaração de nulidade, que pode ser feita a qualquer tempo, justamente por se tratar de mera declaração, que como tal, não se sujeita a prazo1819.
Por outro lado, fica patente pela análise integral do art. 54, que o mesmo visou estabilizar, principalmente, os atos que produzam efeitos patrimoniais, numa preocupação legítima e justificável, de poupar os administrados dos terríveis efeitos decorrentes da devolução de quantias, ou da supressão de vantagens pecuniárias já incorporadas ao seu patrimônio, em flagrante violação a cláusula da estabilidade financeira.2021
Ressalte-se que para se proceder à invalidação de ato administrativo que afete esfera jurídica de terceiros, deve a administração instaurar o devido processo administrativo, para que se garanta os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
1Não se deve esquecer que devido à presunção de legalidade que opera em favor dos atos administrativos, mesmo o ato viciado pode ser executado, sendo, pois, exigível, até que sua invalidade seja declarada e o mesmo retirado do mundo jurídico, por decisão administrativa ou judicial. O ato nulo é eficaz enquanto não se proclama a nulidade.
2É complexa a questão da produção e do desfazimento dos efeitos de atos declaradamente nulos.A solene e costumeira declaração de que a nulidade opera efeitos retroativos – ex tunc, deve ser entendida em termos. É que em homenagem aos princípios da segurança jurídica e da boa-fé pode se fazer necessário a manutenção de alguns dos efeitos decorrentes de ato originariamente nulos, mediante espécie de convalidação tácita. É o que ocorre, por exemplo, com os atos praticados por agente público com vício de nulidade em sua investidura, cujos atos praticados que atingiram administrados de boa-fé devem ser mantidos.
Mesmo no Direito Civil, Washington de Barros Monteiro, mitigando, embora, o conceito clássico de que o nulo jamais produz efeito, assevera que a teoria das nulidades já começou a se complicar desde o nascedouro, no mesmo Direito Romano que a perfilhou, onde foi pouco a pouco suavizada pela atividade pretoriana. Também kelsen, refuta a idéia de que ato nulo não produz efeitos.
3Di Pietro, na obra já citada anteriormente, pg.227, lembra que vem se firmando o entendimento de que para a invalidação de ato administrativo que afete interesse de terceiros, necessário se faz a observância do contraditório, devido ao art. 5º, LV da CRFB, o que obrigaria a administração a instaurar processo administrativo e citar o interessado para manifestar-se. Cita a autora legislação paulista na qual está regra está positivada. De toda a sorte, no âmbito da legislação federal, a lei nº 9.784/90, exige, no art. 50, que a decisão que revogue ou anule ato administrativo tenha que ser obrigatoriamente motivada.
4Não é pacífico na doutrina o entendimento a cerca da vinculação ou discricionariedade da anulação. Di Pietro entende ser, de regra, obrigatória a invalidação. Apenas em casos excepcionais, quando o prejuízo decorrente da invalidação for maior que a manutenção da situação já configurada é que a Administração poderá deixar de fazê-lo. Este entendimento reflete muito bem o aparente dualismo que ora pode se instalar entre o Princípio da Legalidade e o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Na verdade, a administração deve anular ou então, convalidar o ato administrativo, para a manutenção dos seus efeitos relativamente a terceiros. O que não se toleraria seria a manutenção indefinida de uma situação de ilegalidade.
5Di Pietro – pg.228-229- leciona que a competência sempre está definida em lei, por conseguinte, será ilegal o ato praticado por agente que não seja detentor das atribuições previstas em lei, como também o será quando o agente exorbita de suas atribuições legais. Prossegue a autora apontando que os principais vícios relativos à competência são a usurpação de função, o excesso de poder e a função de fato. A usurpação de função pública – crime previsto no art. 328 do Código Penal- ocorre quando o ato foi praticado por quem se quer tinha algum tipo de investidura em cargo público. O excesso de poder ocorre quando o agente, competente em tese para a prática do ato, excede os limites de sua competência, ou exaspera no uso de meios materiais para a execução do ato.Tal manifestação, juntamente com o chamado desvio de poder ou desvio de finalidade, constituem, no entendimento da referida autora, hipóteses de abuso de autoridade – uma das infrações previstas na lei nº 4.898/65.o exercício de função de fato seria aquele decorrente de agente irregularmente investido em cargo ou função pública, vale dizer, aquele que embora com investidura, apresenta vício na mesma.Com relação aos atos praticados por usurpador de função pública, os mesmos seriam inexistentes. Os praticados por agente de fato, seriam válidos(convalidados) quando houver uma aparência de legalidade e atingirem terceiros de boa-fé; ou nulos, quando manifesta e patente a incompetência. Lembra ainda a autora paulista as hipóteses de suspeição e impedimento, previstas no art. 18 e 20 da Lei nº 9.784/99, que acarretariam casos de incapacidade do agente. Entende a autora, que tais hipóteses, diferentemente do que ocorre no processo penal, são, aqui, casos de anulabilidade e não de nulidade.
6Quando a lei expressamente exigir determinada formalidade procedimental, ou determinar que determinado objetivo(finalidade) só possa ser alcançada por ato próprio ou específico, o desatendimento a tais exigências implicará em vício formal.Nestes casos, diz-se, como no Direito Civil, que a forma é essencial – requisito indispensável a validade do ato.
7Di Pietro acrescenta que além de lícito (não importar em violação de lei) o objeto deve ser possível (possibilidade jurídica e material), moralmente aceito e determinado.
8O desvio de finalidade ocorrerá tanto quando o agente praticar ato com fim que não atenda ao interesse público (finalidade em sentido amplo), como ocorre quando através de procedimento aparentemente legal e legítimo, se busca privilegiar e atender interesses de grupo ou pessoa determinada, como também ocorrerá quando o agente praticar o ato visando finalidade diversa daquela prevista especificamente para o ato, como ocorre quando se remove servidor com fito punitivo.No último caso, é mais fácil comprovar-se o desvio de finalidade, já no segundo, torna-se mais difícil, pois o ato se reveste de uma aparente legitimidade, e o desvio de finalidade encontra-se oculto. Di Pietro, citando Cretella Junior, aponta alguns indícios que podem levar a descoberta do vício: motivação insuficiente; motivação contraditória; irracionalidade do procedimento acompanhada pela edição do ato; a camuflagem dos fatos; a inadequação entre os motivos e os efeitos e o excesso de motivação.
9Observa-se também as mesmas dificuldades no Direito do Trabalho, quanto aos efeitos dos contratos de trabalho declarados nulos, e no direito processual civil, recebendo o tema, aqui e acolá tratamentos diferenciados, graças à influência, maior ou menor dos princípios gerais informadores de cada uma dessas disciplinas jurídicas.
10Alguns autores denominam as imperfeições dos atos jurídicos simplesmente de nulidade absoluta e nulidade relativa, correspondendo, respectivamente à nulidade e à anulabilidade, aqui mencionadas. Em outras classificações mais elaboradas, usadas principalmente no direito processual, se segue classificação um pouco diversa, onde se distingue: a) a nulidade absoluta: onde há violação à norma de ordem pública; b) nulidade relativa: onde o defeito do negócio jurídico macula norma imperativa, mas de ordem privada; c) anulabilidade: onde se viola norma meramente dispositiva, também de ordem privada.
11É clássica a posição de Lopes Meirelles, ao não admitir atos administrativos meramente anuláveis “pela impossibilidade de preponderar o interesse privado sobre os atos ilegais, ainda que assim o desejem as partes, porque a isto se opõe a exigência da legalidade administrativa”.
12Seabra Fagundes, citado por Di Pietro, entende ser possível aplicar-se a teoria das nulidades do direito civil ao direito administrativo: tais atos seriam nulos ou absolutamente inválidos quando violarem regras fundamentais atinentes à manifestação da vontade, ao motivo, à finalidade ou à forma, havidas de obediência indispensável pela sua natureza, pelo interesse público que as inspira ou por menção expressa da lei. Seriam anuláveis os que infringem regras atinentes aos cinco elementos do ato administrativo, mas em face de razões concretamente consideradas, se tem como mais bem atendido o interesse público pela sua parcial validez”.
13Referimo-nos ao art. 55 da Lei nº 9.974/99. De fato, se a norma legal admite a existência de atos administrativos com defeitos sanáveis, possibilitando, para os mesmos, a convalidação, é porque fez distinção entre vício sanável – que gera anulabilidade, e vícios insanáveis - que geram as nulidades. Logo, diante de um vício sanável, dispõe a administração da faculdade de saná-lo, convalidando-o, ou de desfazê-lo, por anulação. Todavia, diante do ato nulo, impõe-se apenas o dever de declarar-lhe a nulidade, visto serem impassíveis de convalidação, mesmo que tácita.
14“Quanto ao aspecto doutrinário, os institutos da decadência e da prescrição distinguem-se, precipuamente, em razão dos direitos sobre os quais exercem seus efeitos extintivos. Alguns direitos são exercidos por iniciativa de apenas uma das partes, o titular do direito, que impõe e exige a submissão do obrigado aos seus efeitos legais. A atuação unilateral do titular do direito consubstancia o ato jurídico e seus efeitos. Sobre esses direitos, de cunho potestativo, incidem, em regra, os prazos extintivos de natureza decadencial. Por sua vez, a prescrição está afeta àqueles direitos para os quais o titular pode exigir de outrem a satisfação da pretensão protegida, ou seja, o obrigado tem o dever jurídico de agir ou de se abster para satisfazer o direito da parte titular do direito” – Parecer/CJ 2.434/2001 – Daniel Demonte Moreira –AJU.
15Aqui a ponderação entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica já foi feita pelo legislador, competindo ao aplicador apenas verificar se os pressupostos que integram o preceito estão, ou não, concretamente verificados.
16É o que determina, o art.114 da lei nº 8.112/90 “A administração deverá rever seus atos, a qualquer tempo, quando eivados de vícios de ilegalidade”.
17O Tribunal de Contas da União perfila o entendimento que a decadência administrativa não se aplica aos processos de controle externo, como se observa no arresto do GRUPO II - CLASSE V - 2ª Câmara, “...o segundo, porque essa decadência administrativa não se aplica aos processos de controle externo, conforme já decidido por este Tribunal (Decisão nº 1.020/2000 - Plenário) e pelo Supremo Tribunal Federal que, em recente deliberação de 04/08/2004, reafirmou, por unanimidade, a inaplicabilidade do Instituto em tela em caso idêntico ao ora examinado”.
O Egrégio STJ, em voto de Ministro Felix Fischer apresenta entendimento diverso, como se constata no arresto RESP 571981: “Assinalo que a lei não faz distinção entre nulidade e anulabilidade, ao tratar da possibilidade de invalidação dos atos eivados de ilegalidade, e ao estabelecer os limites para o exercício deste direito. Trate-se de ato nulo ou anulável, a regra do art. 54 da Lei 9.784/99 é aplicável. Registro, por fim, que o caso dos autos não se assemelha às hipóteses de inexistência, absolutamente insanáveis, como bem apreendido pelo agente ministerial, em seu parecer. O caso é de nulidade, após a vigência da Lei 8.168/91 e, como já examinado, comporta solução pela aplicação do art. 54 da Lei 9.784/99.”
18O art. 1º da Lei de Ação Popular faz a diferenciação aqui menciona ao estabelecer “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista...”
19No mesmo sentido, voto do Des. Federal João Batista Pinto Silveira, do TRF/RS, na Apelação Civil nº 2003.04.011399-0/RS : “Apenas quanto aos atos nulos − não na acepção que dá a esse qualificativo a doutrina do Direito Privado, mas na conceituação que lhe empresta o Direito Administrativo dos países europeus mais avançados e o Direito Administrativo da União Européia e que de algum modo, também já encontramos incipientemente esboçada na Lei da Ação Popular − apenas quanto aos atos nulos não haveria falar em decadência ou em prescrição, uma vez que incumbe ao juiz decretar−lhes de ofício a invalidade. Note−se, porém, que nulos apenas serão aqueles atos administrativos, inconstitucionais ou ilegais, marcados por vícios ou deficiências gravíssimas, desde logo reconhecíveis pelo homem comum, e que agridem em grau superlativo a ordem jurídica, tal como transparece nos exemplos da licença de funcionamento de uma casa de prostituição infantil ou da aposentadoria, como servidor público, de quem nunca foi servidor público. Não é a hierarquia da norma ferida que, por si só, implica a nulidade. como mostra o acórdão do STF no MS 22357/DF, que aplicou o princípio da segurança jurídica para manter atos administrativos contrários à Constituição. A grande maioria dos atos administrativos, inconstitucionais ou ilegais, não é, pois, composta por atos administrativos nulos, mas sim por atos administrativos simplesmente anuláveis, estando o direito a pleitear−lhe a anulação sujeito, portanto, à decadência”.
20A jurisprudência trabalhista desde muito reconhece a possibilidade de declaração de nulidade de contrato de trabalho, a qualquer tempo, aceitando a manutenção de alguns de seus efeitos financeiros.